11 de março de 2022

Aforismo II

Aforismo

II
Esse troço velho está confortavelmente instalado em Madri. Talvez seja para os desatentos pensarem: "é uma relíquia, uma obra de arte magnífica". Mas, para além disso, o que ela hoje pode nos dizer? Para os atentos em meio a uma vida saturada de telas, cores, realismos, com as mais belas e desejadas mentiras digitalmente aprimoradas e sacanamente sublimadas, quais os significados possíveis de Guernica?
Picasso em 1937 certamente desejou despertar algo em nós. Despertou e continua despertando. O impacto, o horror e o sentimento de que não havia (e ainda não há!) sentido algum na guerra. Fez isso somente com esses caracteres estáticos em branco e preto. Talvez o que ele intencionava despertar fosse também a humanidade. Mostrou a desgraçada guerra através do cubismo, para salvaguardar o sensível. Homens e mulheres daquela época entenderam? Não sei. Sei que hoje a guerra está em todas as suas cores. Sua explícita realidade está em todas nossas telas e o que a maioria dos homens e mulheres de nosso tempo sentem? Nada!!!
Intervenções armadas estavam entupindo os cinemas, o horror da guerra foi transformado em entretenimento (para crianças e adultos idiotas) e os mais diversos super heróis da Marvel ou DC Comics são quase mais reais que a fome que nos assola. A devastação brutal da guerra intermediada por humor e romance. Nossos sentidos foram entorpecidos com dezenas de ameaças de destruição do planeta e todos hoje temos o super poder da insensibilidade, a frieza burguesa é o fio condutor de nossas emoções. Nada nos assusta, em nosso imaginário o mundo quase acabou e foi salvo dezenas de vezes.... logo nada mais é capaz de nos assustar, afinal haverá um beijo ou uma piada no final.
Em minha última viagem, fui comprar um chapéu. Havia uma tapeçaria reproduzindo Guernica pendurada na parede. Meu Jesus Cristo, haviam ali mulheres sofrendo, casas incendiadas, crianças mortas, pela bagatela de 500 dinheiros. E diante de mim e do vendedor um pai pedindo comida. Houve alguns desses pais e mães pedintes em toda viagem. Quem os viu, ou quem se importou? Para mim é mais do que pornográfico, cenas impossivelmente degeneradas. Hajam chás para enfrentar e suportar a realidade. Mas voltando à tapeçaria em frente a loja de chapéu. Ali eu poderia dizer para as pessoas próximas, "cuidado, espere um pouco", ou gritasse: "não olhe isso, é uma arma contra sua frieza!!!" Mas se o fizesse me internariam novamente.

Bem, no final das contas é exatamente isso o que os tiranos querem, que nos habituemos com a morte, sofrimento, miséria. Nada pude fazer, a não ser me silenciar, salvar minha pele e ceder um almoço que talvez tenha feito alguma diferença para o dia daquele pai pedinte. Assistencialismo, doação, nada disso é útil eu sei, eu sei que na verdade até atrapalha...
Todavia o que ainda me importa é tentar entender como manipulam todos. Há algo neles mais inteligente do em que nós, sem dúvidas. Nós que temos preguiça de pensar e de viver. Por sorte, e por acaso, talvez do nosso lado ainda esbarremos em quem gastando a vida seja capaz de entender aquele maldito quadro de Picasso, que aparecendo numa tapeçaria ainda é capaz de vez ou outra aborrecer alguém.
Eles podem ainda dominar e ser a nação, sem fronteiras, mais poderosa do mundo. Poderão conquistar corações e mentes, jogar seus exércitos ali, lá e acolá, poderão se impor pela força, mas nunca poderão se meter e ofuscar os pensamentos daqueles que entenderam Picasso.



José Melo, 11 de Março de 2022

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