23 de março de 2022

Aforismo III

 Aforismo 

III

Antonin Artaud, o expoente escritor e teórico do 'teatro da crueldade', redigiu muitas coisas a respeito da loucura. Houve extensos diálogos entre Artaud e seus médicos psiquiatras, nos quais Artaud defendia sua crença de que era vítima de invocações vudú, questionava a conduta coercitiva de aprisionar pessoas em manicômios, mas de forma aparentmente contraditória exigia seu direito de se isolar de outras pessoas. Em resposta a isto, alguns de seus psiquiatras invocavam com insistência a necessidade, para Artaud, de se conformar com a sociedade a qual até eles mesmos eram também críticos. Mas, em determinados momentos finalizando os diálogos, vinha sempre a advertência: 'Se falar de novo de enfeitiçamento, Sr. Artaud, levará 65 eletrochoques'. Deve haver um sentido nas 'afirmações delirantes' de Artaud, pois de fato elas representavam uma profunda realidade da vida, uma realidade que, anos após sua morte, nós os atentos apenas começamos a apreciar: ele tinha mais a dizer com relação à loucura do que todos os livros e pesquisas publicadas de Psiquiatria. Talvez a dificuldade de Artaud consistia no fato de que ele via demais e falava demais sobre a verdade. No fm de sua vida, tinha se curado. Não é talvez excessivamente absurdo afirmar que, com muita frequência, é quando as pessoas começam a ficar mentalmente sadias e reconhecer a verdade nos fatos (na história!), com ou sem ajuda de estimulantes como os usados por Benjamin, Freud ou Bob Marley (rs,rs,rs) que elas acabam entrando nos hospitais de doenças mentais.











18 de março de 2022

O mito da Deep Web

Um dos muitos serviços da Internet é a Web, esse negócio com sites que você acessa pelo navegador, que fez 30 anos recentemente e cujos endereços costumam começar com "http". Apesar de ser apenas um dos muitos protocolos existentes na rede, é mais utilizado que todos os outros.

Há uns anos, um cara chamado Mike Bergman, percebeu que, apesar de existir uma quantidade imensa de informações na Web, a maior parte dela não é pública, depende de credenciais de acesso. Um exemplo seria o Facebook, que só pode ser acessado por quem tem conta nele. E mesmo que tenha, o usuário tem acesso a uma pequena fração do total de informações, que ficam em perfis ou grupos fechados. Nem o Google consegue fazer buscas aqui. Além da maioria de outros sites que também exige login e senha de acesso, outros exemplos são as empresas que disponibilizam conteúdo na Internet com controle de acesso (a maioria delas). A esse mundo inacessível de informação ele deu o nome de Deep Web, a web profunda. Sim, o Facebook é um site da Deep Web. Suas pastas no Dropbox ou aquela página secreta da sua empresa, que você acessa com login e senha, também.


Além da Web, existe uma infinidade de outros protocolos na Internet. Alguns deles são usados para a comunicação com privacidade, direito humano fundamental reconhecido pela ONU e muito usado, por exemplo, por dissidentes políticos. Existem algumas redes minúsculas, com pouquíssimos usuários, que precisam dessa segurança pra fins mais diversos, desde ativistas, jornalistas, informantes, militares, a gente comercializando drogas (sem a necessidade de capangas armados). Esse tipo minúsculo de rede, com conteúdo bem limitado, é chamado de DarkNet. A mais conhecida é a rede Tor, com quase 2 milhões de usuários, o que corresponde a menos de 0,05% dos 4 bilhões de usuários da Internet.

Da confusão entre os dois termos, veio o mito, de que existe este lugar tenebroso e gigantesco, onde o Estado bonzinho não consegue nos proteger das pessoas malvadas. Pra aumentar a ignorância, a mídia acrítica, com seus jornalistas bestas*, faz matérias sensacionalistas e recheadas de mentiras.

*Bestas que não conseguem sequer pronunciar o nome correto da arma medieval também conhecida como balestra: "bÉsta"

11 de março de 2022

Aforismo II

Aforismo

II
Esse troço velho está confortavelmente instalado em Madri. Talvez seja para os desatentos pensarem: "é uma relíquia, uma obra de arte magnífica". Mas, para além disso, o que ela hoje pode nos dizer? Para os atentos em meio a uma vida saturada de telas, cores, realismos, com as mais belas e desejadas mentiras digitalmente aprimoradas e sacanamente sublimadas, quais os significados possíveis de Guernica?
Picasso em 1937 certamente desejou despertar algo em nós. Despertou e continua despertando. O impacto, o horror e o sentimento de que não havia (e ainda não há!) sentido algum na guerra. Fez isso somente com esses caracteres estáticos em branco e preto. Talvez o que ele intencionava despertar fosse também a humanidade. Mostrou a desgraçada guerra através do cubismo, para salvaguardar o sensível. Homens e mulheres daquela época entenderam? Não sei. Sei que hoje a guerra está em todas as suas cores. Sua explícita realidade está em todas nossas telas e o que a maioria dos homens e mulheres de nosso tempo sentem? Nada!!!
Intervenções armadas estavam entupindo os cinemas, o horror da guerra foi transformado em entretenimento (para crianças e adultos idiotas) e os mais diversos super heróis da Marvel ou DC Comics são quase mais reais que a fome que nos assola. A devastação brutal da guerra intermediada por humor e romance. Nossos sentidos foram entorpecidos com dezenas de ameaças de destruição do planeta e todos hoje temos o super poder da insensibilidade, a frieza burguesa é o fio condutor de nossas emoções. Nada nos assusta, em nosso imaginário o mundo quase acabou e foi salvo dezenas de vezes.... logo nada mais é capaz de nos assustar, afinal haverá um beijo ou uma piada no final.
Em minha última viagem, fui comprar um chapéu. Havia uma tapeçaria reproduzindo Guernica pendurada na parede. Meu Jesus Cristo, haviam ali mulheres sofrendo, casas incendiadas, crianças mortas, pela bagatela de 500 dinheiros. E diante de mim e do vendedor um pai pedindo comida. Houve alguns desses pais e mães pedintes em toda viagem. Quem os viu, ou quem se importou? Para mim é mais do que pornográfico, cenas impossivelmente degeneradas. Hajam chás para enfrentar e suportar a realidade. Mas voltando à tapeçaria em frente a loja de chapéu. Ali eu poderia dizer para as pessoas próximas, "cuidado, espere um pouco", ou gritasse: "não olhe isso, é uma arma contra sua frieza!!!" Mas se o fizesse me internariam novamente.

Bem, no final das contas é exatamente isso o que os tiranos querem, que nos habituemos com a morte, sofrimento, miséria. Nada pude fazer, a não ser me silenciar, salvar minha pele e ceder um almoço que talvez tenha feito alguma diferença para o dia daquele pai pedinte. Assistencialismo, doação, nada disso é útil eu sei, eu sei que na verdade até atrapalha...
Todavia o que ainda me importa é tentar entender como manipulam todos. Há algo neles mais inteligente do em que nós, sem dúvidas. Nós que temos preguiça de pensar e de viver. Por sorte, e por acaso, talvez do nosso lado ainda esbarremos em quem gastando a vida seja capaz de entender aquele maldito quadro de Picasso, que aparecendo numa tapeçaria ainda é capaz de vez ou outra aborrecer alguém.
Eles podem ainda dominar e ser a nação, sem fronteiras, mais poderosa do mundo. Poderão conquistar corações e mentes, jogar seus exércitos ali, lá e acolá, poderão se impor pela força, mas nunca poderão se meter e ofuscar os pensamentos daqueles que entenderam Picasso.



José Melo, 11 de Março de 2022