28 de setembro de 2022

Aforismo V

Aforismo V.....

Para não surtar da última quinta eu com os outros eus, sem conseguirmos dormir, nas últimas noites assistimos tudo que pudemos que foi produzido por Pasolini – o fantasma - percebi a complexidade daquele que talvez tenha sido um dos últimos intelectuais públicos. Uma complexidade que emerge banhada não só de antíteses, como vida individual e coletiva, mas também de aparentes contradições entre conservadorismo e o mais alto grau possível de subversão, entre uma sacralização do milagre do mundo e um ateísmo marxista – “cristianismo ateu” eu diria... ,mas Recalcati disse isso antes. Pasolini critica o conluio entre um novo fascismo e a então crescente civilização do consumo, e sonhava com um tempo mítico, onde o mistério do mundo se expressaria, por exemplo, no desaparecimento dos vaga-lumes. Assim, se o “Novo fascismo" não se funda sobre um regime policialesco que nega a liberdade individual, mas sobre um regime paradoxalmente permissivo que retira todo o sentido da vida em nome de uma ilimitada promessa hedonista. Até as poetas reproduzem esse hedonismo vazio. Minha filha nunca viu um vagslume. O desaparecimento dos vaga-lumes é o símbolo de um tempo em que o mistério ainda habitava o mundo. O mundo é desmistificando pela mercadoria, e até o amor se confunde com mercadoria. Pasolini é o retrato de um conflito não resolvido entre vida e história, corpo e razão, indivíduo e comunidade, mito e desmitização; as metamorfoses do poder e a resistência da imagem e das palavras.

23 de setembro de 2022

Aforismo IV

O problema é que assim de repente, no intervalo de um fim de uma tarde e início de noite, todos os sentimentos gentis e bons que eu nutria por ela deixaram de fazer o menor sentido. Isso diante de todas as últimas revelações e também por todas as últimas condutas confessas e fatos. Para os atentos, como nós, há em tudo uma ou mais lições. Aprendi que é assim, paixão, amor, afeições, apagam-se como chama de uma vela. Talvez seja Deus. Talvez  seja ele  que tem um ritmo demasiadamente acelerado e goste de atropelar a mediocridade e mesquinhez dos sentimentos humanos. Há uma crise enorme em cada uma das psiques, sendo que é dessa crise rítmica, corporal, dançante, que surge as compreesões daquilo que nós realmente somos: ruínas de um deus que dentro da gente insiste em não morrer, aquele que também evita que todos nós sejamos de fato humanos, no mais pleno sentido da palavra. Deus não é amor, é ódio, é tormento, tortura e medo. Essa é a condição divina e humana. A contradicão maior que há é aquela que existe entre um deus que não se conhece e a humanidade que não se deixa completar. Doçura é fachada, há dentro de cada um de nós um deus terrível, o importante é não despertá-lo. Alguém precisa dizer isso para ela e para o Sidarta Ribeiro. A "Revolução da Esperança" e "A Arte de Amar" de Eric Fromm, até puderam enganar bem por um tempo, mas no fim são igualmente leituras inúteis. Já "Eros e Civilização" é uma obra assertiva. Quando o "eu" voltar espero não esquecer jamais dessas cousas de hoje...Esquecendo-as, que eu faça um bom chá para reavivar tal memória.
 

23 de março de 2022

Aforismo III

 Aforismo 

III

Antonin Artaud, o expoente escritor e teórico do 'teatro da crueldade', redigiu muitas coisas a respeito da loucura. Houve extensos diálogos entre Artaud e seus médicos psiquiatras, nos quais Artaud defendia sua crença de que era vítima de invocações vudú, questionava a conduta coercitiva de aprisionar pessoas em manicômios, mas de forma aparentmente contraditória exigia seu direito de se isolar de outras pessoas. Em resposta a isto, alguns de seus psiquiatras invocavam com insistência a necessidade, para Artaud, de se conformar com a sociedade a qual até eles mesmos eram também críticos. Mas, em determinados momentos finalizando os diálogos, vinha sempre a advertência: 'Se falar de novo de enfeitiçamento, Sr. Artaud, levará 65 eletrochoques'. Deve haver um sentido nas 'afirmações delirantes' de Artaud, pois de fato elas representavam uma profunda realidade da vida, uma realidade que, anos após sua morte, nós os atentos apenas começamos a apreciar: ele tinha mais a dizer com relação à loucura do que todos os livros e pesquisas publicadas de Psiquiatria. Talvez a dificuldade de Artaud consistia no fato de que ele via demais e falava demais sobre a verdade. No fm de sua vida, tinha se curado. Não é talvez excessivamente absurdo afirmar que, com muita frequência, é quando as pessoas começam a ficar mentalmente sadias e reconhecer a verdade nos fatos (na história!), com ou sem ajuda de estimulantes como os usados por Benjamin, Freud ou Bob Marley (rs,rs,rs) que elas acabam entrando nos hospitais de doenças mentais.











18 de março de 2022

O mito da Deep Web

Um dos muitos serviços da Internet é a Web, esse negócio com sites que você acessa pelo navegador, que fez 30 anos recentemente e cujos endereços costumam começar com "http". Apesar de ser apenas um dos muitos protocolos existentes na rede, é mais utilizado que todos os outros.

Há uns anos, um cara chamado Mike Bergman, percebeu que, apesar de existir uma quantidade imensa de informações na Web, a maior parte dela não é pública, depende de credenciais de acesso. Um exemplo seria o Facebook, que só pode ser acessado por quem tem conta nele. E mesmo que tenha, o usuário tem acesso a uma pequena fração do total de informações, que ficam em perfis ou grupos fechados. Nem o Google consegue fazer buscas aqui. Além da maioria de outros sites que também exige login e senha de acesso, outros exemplos são as empresas que disponibilizam conteúdo na Internet com controle de acesso (a maioria delas). A esse mundo inacessível de informação ele deu o nome de Deep Web, a web profunda. Sim, o Facebook é um site da Deep Web. Suas pastas no Dropbox ou aquela página secreta da sua empresa, que você acessa com login e senha, também.


Além da Web, existe uma infinidade de outros protocolos na Internet. Alguns deles são usados para a comunicação com privacidade, direito humano fundamental reconhecido pela ONU e muito usado, por exemplo, por dissidentes políticos. Existem algumas redes minúsculas, com pouquíssimos usuários, que precisam dessa segurança pra fins mais diversos, desde ativistas, jornalistas, informantes, militares, a gente comercializando drogas (sem a necessidade de capangas armados). Esse tipo minúsculo de rede, com conteúdo bem limitado, é chamado de DarkNet. A mais conhecida é a rede Tor, com quase 2 milhões de usuários, o que corresponde a menos de 0,05% dos 4 bilhões de usuários da Internet.

Da confusão entre os dois termos, veio o mito, de que existe este lugar tenebroso e gigantesco, onde o Estado bonzinho não consegue nos proteger das pessoas malvadas. Pra aumentar a ignorância, a mídia acrítica, com seus jornalistas bestas*, faz matérias sensacionalistas e recheadas de mentiras.

*Bestas que não conseguem sequer pronunciar o nome correto da arma medieval também conhecida como balestra: "bÉsta"

11 de março de 2022

Aforismo II

Aforismo

II
Esse troço velho está confortavelmente instalado em Madri. Talvez seja para os desatentos pensarem: "é uma relíquia, uma obra de arte magnífica". Mas, para além disso, o que ela hoje pode nos dizer? Para os atentos em meio a uma vida saturada de telas, cores, realismos, com as mais belas e desejadas mentiras digitalmente aprimoradas e sacanamente sublimadas, quais os significados possíveis de Guernica?
Picasso em 1937 certamente desejou despertar algo em nós. Despertou e continua despertando. O impacto, o horror e o sentimento de que não havia (e ainda não há!) sentido algum na guerra. Fez isso somente com esses caracteres estáticos em branco e preto. Talvez o que ele intencionava despertar fosse também a humanidade. Mostrou a desgraçada guerra através do cubismo, para salvaguardar o sensível. Homens e mulheres daquela época entenderam? Não sei. Sei que hoje a guerra está em todas as suas cores. Sua explícita realidade está em todas nossas telas e o que a maioria dos homens e mulheres de nosso tempo sentem? Nada!!!
Intervenções armadas estavam entupindo os cinemas, o horror da guerra foi transformado em entretenimento (para crianças e adultos idiotas) e os mais diversos super heróis da Marvel ou DC Comics são quase mais reais que a fome que nos assola. A devastação brutal da guerra intermediada por humor e romance. Nossos sentidos foram entorpecidos com dezenas de ameaças de destruição do planeta e todos hoje temos o super poder da insensibilidade, a frieza burguesa é o fio condutor de nossas emoções. Nada nos assusta, em nosso imaginário o mundo quase acabou e foi salvo dezenas de vezes.... logo nada mais é capaz de nos assustar, afinal haverá um beijo ou uma piada no final.
Em minha última viagem, fui comprar um chapéu. Havia uma tapeçaria reproduzindo Guernica pendurada na parede. Meu Jesus Cristo, haviam ali mulheres sofrendo, casas incendiadas, crianças mortas, pela bagatela de 500 dinheiros. E diante de mim e do vendedor um pai pedindo comida. Houve alguns desses pais e mães pedintes em toda viagem. Quem os viu, ou quem se importou? Para mim é mais do que pornográfico, cenas impossivelmente degeneradas. Hajam chás para enfrentar e suportar a realidade. Mas voltando à tapeçaria em frente a loja de chapéu. Ali eu poderia dizer para as pessoas próximas, "cuidado, espere um pouco", ou gritasse: "não olhe isso, é uma arma contra sua frieza!!!" Mas se o fizesse me internariam novamente.

Bem, no final das contas é exatamente isso o que os tiranos querem, que nos habituemos com a morte, sofrimento, miséria. Nada pude fazer, a não ser me silenciar, salvar minha pele e ceder um almoço que talvez tenha feito alguma diferença para o dia daquele pai pedinte. Assistencialismo, doação, nada disso é útil eu sei, eu sei que na verdade até atrapalha...
Todavia o que ainda me importa é tentar entender como manipulam todos. Há algo neles mais inteligente do em que nós, sem dúvidas. Nós que temos preguiça de pensar e de viver. Por sorte, e por acaso, talvez do nosso lado ainda esbarremos em quem gastando a vida seja capaz de entender aquele maldito quadro de Picasso, que aparecendo numa tapeçaria ainda é capaz de vez ou outra aborrecer alguém.
Eles podem ainda dominar e ser a nação, sem fronteiras, mais poderosa do mundo. Poderão conquistar corações e mentes, jogar seus exércitos ali, lá e acolá, poderão se impor pela força, mas nunca poderão se meter e ofuscar os pensamentos daqueles que entenderam Picasso.



José Melo, 11 de Março de 2022